De olhos vidrados no futuro, esqueceu as mágoas que arrastava por anos afora. Deixou de lado aquelas sentenças de vida ou morte, em que todo o universo parece conspirar sobre algumas circunstâncias. Preferiu arriscar alguns passos, um após o outro - mirando um mergulho profundo no amanhã. Mas eis que as correntes de auto-sabotagem zuniam ao seu redor, tornando a sua decisão uma dúvida e trocando as certezas por inúmeros pontos de interrogação.
'Me desculpe, eu não sei se posso...' - os olhos pousados sobre os próprios joelhos.
'A questão não é se pode ou não: você quer?' - uma mão esfregando a outra, pausa para colocar a mecha de cabelo atrás da orelha direita, o olhar sobe ao encontro do dele.
'Sim.'
'Ninguém disse que seria fácil dar essa guinada completamente inusitada em nossas vidas. Mas pelo que conheço, o caminho fácil não nos chama muito a atenção, então...' - Ele sorri aquele sorriso de garoto entusiasmado, com uma covinha marcada no canto da boca.
'Eu pensei que realmente seria fácil, pelo menos uma vez na vida. É um pouco desgastante essa postura de fazer sempre o certo.'
'Vai valer a pena, e posso arriscar dizer que já está valendo.'
Acordou do sonho completamente zonza. Já era 17 horas e estava atrasada, algo habitual em seu cotidiano. Foi aquele relaxante muscular, por que raios tinha deitado na cama se tinha tantas coisas a resolver? Mas dessa vez ela iria ser um pouco mais rápida, era questão de honra. Tomou um banho rápido, jogou as suas coisas dentro da bolsa, fechou as janelas, trancou a porta e saiu correndo. Passou pelos vizinhos e sequer esboçou um cumprimento, atravessou a rua e, no meio do canteiro, lembrou da carta escrita na madrugada. Folhas e folhas de desabafo e de alma derramada sobre o papel. Não poderia deixar para trás todo aquele sentimento exposto, como uma fratura que necessitava de alguma espécie de observação e cura.
Deu meia-volta e retomou o caminho de casa, amaldiçoando o seu relógio biológico estragado, o salto agulha, a bolsa pesada, a dor na coluna, a fome descomunal de quem não tinha nem bebido um gole de café, e o passado...
Sentiu um baque seco e a boca ficou úmida repentinamente, a coluna parou de doer, a fome passou, a cabeça pesou e os olhos foram fechando enquanto pensava na carta, inerte em cima da cama - ao mesmo tempo em que jazia para um futuro hipotético.
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