Eu acordo todo dia num ritual de abrir os olhos e inspirar lentamente, umas oito vezes. Fico olhando pro teto e a pintura, que jaz, exposta e inacabada. Uma promessa. A solidão dos pincéis esquecidos entre as folhas amassadas na gaveta. Reviro os olhos e suspiro. Levanto como quem ressurge de uma viagem longa através da consolação do id entre-sonhos.
Já não sei mais tomar café e deixo sempre a xícara no balcão, antes de alcançar o pátio dos fundos. As plantas escondem a porta do ateliê, o vidro ficou opaco pelo tempo e falta de um pano úmido. Vejo um filme em que há um homem sorrindo, sujo de tinta, olhos marejados pela emoção de uma obra concluída. Quando volto para dentro de casa e procuro no espelho não consigo encontrá-lo. Só há barba por fazer e uma cicatriz.
O jornal inerte e atravessado na portinhola passa pelas minhas mãos e fica em cima de uma mesa que antes servia para jantar. As risadas ainda estão ali, na multidão de pratos por lavar e restos de comida congelada. O pé da mesa roído lembra que todos são frágeis, todos têm começo, têm meio e fim. Atravesso o corredor e olho os fios do telefone cortados. A faca jogada no chão e um pouco de sangue insinuam a quase-fuga no desespero da ausência.
Outro dia enfrentei a porta da frente, cara-a-cara. Cheguei a sentir o calor do sol na pele enquanto a mão ainda segurava a maçaneta. Um carro quebrou meu silêncio e roubou minha paz ao lembrar do martírio de ser sobrevivente. Lágrimas literalmente pularam pelos olhos já vazios e sem brilho. Não consegui conter o grito guardado, que rompeu junto do barulho da porta ao bater atrás de mim. Meu rumo certo: a cama de lençóis rançosos e rasgados pelos movimentos bruscos de quem se debate.
Algumas vezes resmungo, até. Parece que as minhas cordas vocais ainda conseguem balbuciar frases com nexo. Mas não consigo evitar sussurrar te amo pela manhã, antes de me dar conta de que foi só mais um sonho por você estar presente. Só escrevo neste caderno amarelo e manchado de café porque a minha irmã viajou até aqui para derrubar a porta e ameaçar me internar. Se eu fosse ameaçado de morte, certamente não moveria um músculo. Quem sabe daqui há alguns dias eu até consiga enfrentar novamente a porta, sem que seja para buscar uma caixa de mantimentos que recebo, com um braço só e a noite. Aí percebo vontade de continuar a ser e completar nossos planos. Inanição também nunca foi o meu forte, a raiva sim.
Algumas vezes resmungo, até. Parece que as minhas cordas vocais ainda conseguem balbuciar frases com nexo. Mas não consigo evitar sussurrar te amo pela manhã, antes de me dar conta de que foi só mais um sonho por você estar presente. Só escrevo neste caderno amarelo e manchado de café porque a minha irmã viajou até aqui para derrubar a porta e ameaçar me internar. Se eu fosse ameaçado de morte, certamente não moveria um músculo. Quem sabe daqui há alguns dias eu até consiga enfrentar novamente a porta, sem que seja para buscar uma caixa de mantimentos que recebo, com um braço só e a noite. Aí percebo vontade de continuar a ser e completar nossos planos. Inanição também nunca foi o meu forte, a raiva sim.
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