Quando crianças somos esponjas
que absorvem tudo à nossa volta, desmedidamente. Tudo adquire importância, dado
que não conseguimos escolher e nem dar as devidas dimensões a cada
acontecimento, percepção, sentimento. Assim como as coisas vêm, elas ficam. E
se quedam ali de qualquer jeito como se fossem brinquedos jogados dentro de um
armário, acumulados e empilhados sem categoria ou classificação. Não há ordem,
só há uns por cima dos outros. Tudo o que vivenciamos fica gravado de uma forma
peculiar, a nossa forma de absorver as coisas – e cada um tem a sua.
Depois, adolescentes, temos a
urgência de quem quer tudo pro agora (se for pra ontem melhor ainda) e apesar
de haver um certo assentamento daquilo que acumulamos no passado ainda não
conseguimos dar as medidas exatas por estarmos nesse momento do exagero de
tudo. A fase é de seguir em frente, mesmo com esse incômodo causado pela
bagunça chacoalhando dentro de nós, para juntar mais experiências. Fazemos
reflexões com aquilo que temos disponível, à mão, mais em cima. Metemos a mão e
puxamos algo para servir de argumento ou de armamento (contra o quê mesmo
tínhamos de nos defender?).
Ao chegarmos à idade adulta
achamos que estamos crescidos, inteiros – pessoas feitas. O grande engano é
pensar que algo já está pronto, há muito a se fazer: na verdade nada foi feito.
Há uma mistura de objetos a serem ordenados no nosso sótão e fingimos não
saber. Queremos que os outros deem jeito em algo somente para os nossos olhos e
nossas mãos. Precisamos entrar em contato com essa bagagem mista e confusa para
transformá-la em parte de nós mesmos, mas para isso cada coisa precisa adquirir
o seu exato valor. Possuímos cacarecos que consideramos ocupar um grande espaço
e ao olhar de perto, e com calma, percebemos ter na verdade alguns míseros
centímetros. Outros estão camuflados e escondidos debaixo de tapetes, se
fingindo de desimportantes quando deveriam ser fruto de observação cuidadosa.
Aí sim é hora de mergulhar e compreender, encarar os fantasmas e vê-los
transformando-se em bichos de pelúcia empoeirados – quando crianças não
tínhamos como percebê-los de alguma outra maneira.
Passo-a-passo reorganizamos,
reclassificamos e jogamos fora tudo o que não serve para absolutamente nada, só
entulha e atrapalha. Reassumimos o controle sobre o importante e o
desnecessário e podemos abrir mão de culpas inúteis – tanto nossas quanto de
outrem. Só assim, dispostos a fuçar nessa quinquilharia é possível se encontrar
e ser feliz. Mas isso ninguém nos diz – que é fácil e é só querer, está
disponível, é possível. Nos estimulam a seguir em frente mancos, estropiados,
entulhados por dentro dizendo ser normal se sentir desconfortável. E essa
náusea, esse cansaço, esse vazio, esse desconforto – é o quê? Não é nada: vai
trabalhar, namorar, casar, ter filhos, comprar casa e carro, consumir coisas,
comer, transar, beber, fumar, viajar, falar outro idioma, conhecer pessoas,
fazer exercício que passa. Passa?