terça-feira, 31 de julho de 2012

Três piscadas

    Ele carregava consigo uma  foto tirada há mais de vinte anos, no exato momento em que tornava-se um biólogo, graduado pela universidade de sua cidade natal. Naquele tempo achava que teria tudo o que desejasse profundamente, sua vida se apresentava como um panorâmico hall de muitas portas a serem escolhidas. Foi entre os muros daquela universidade que havia aprendido uma noção mais clara da porção 'adulta' a ser encarada, a partir daquele momento. Assumiu tantas responsabilidades quanto foi possível, teve de fazer escolhas ao longo do percurso, e a pior de todas foi deixar Clara para trás. 
    Sabia de seu erro. Deixou-se levar pelas pressões da família: 'este não é o momento de assumir um compromisso desse tamanho', 'você precisa de uma vida estruturada antes', 'tem tanta vida ainda pela frente', 'virão outras e você vai sentir isso outra vez'. Não, não sentiu. O peito dele nunca encheu-se tanto de sentimento como quando estava perto dela. A vida ficava mais transparente enquanto conversavam, tudo parecia mais ao seu alcance. Entretanto foi levado pela enxurrada de decisões e absteve-se de lutar por sua doce amiga, cúmplice e amada Clara.
    O tempo passou e ele construiu a sua vida, cheia das 'estruturas' pedidas pelos seus familiares. Tinha nas mãos tudo aquilo pelo qual lutou todos aqueles anos, menos um amor. É claro que se apaixonou, algumas várias vezes, e sentiu o fogo lhe queimando por dentro. Desejou, e teve, mulheres de diversos biotipos e personalidades. Ainda assim, faltava algo. Algo tranquilo e ao mesmo tempo emocionante, para acompanhá-lo vida afora.
    Lembrou de Clara e resolveu voltar à cidade natal para saber notícias dos olhos verde-água mais cintilantes que havia visto. Foi até a casa azul de aberturas brancas, na esquina do antigo campo de futebol (agora supermercado) e bateu na porta. Abriu uma senhora idosa, de cabelos bem brancos e olhos tão verdes quanto os de sua amada. Questionou e descobriu o paradeiro da doce amiga de tantos anos. Seguiu caminhando pela avenida central, passou a igreja, a prefeitura e avistou o hospital. Entrou e foi secando as lágrimas enquanto caminhava corredores a dentro, em busca dela.
    No terceiro andar, frente ao quarto 35, segurou o ar entre as costelas e adentrou o recinto branco para avistá-la, pálida, sobre a cama. Ela continuava com seus olhos faiscantes de vida, por mais que o seu corpo padecesse do silêncio de movimentos e som. Clara estava tetraplégica, um acidente de moto causou o congelamento daquela moça tão alegre e de tantos sonhos em mente. Eles conheceram-se na universidade, mas faziam cursos diferentes: ele biologia e ela pedagogia. Amava crianças e queria contribuir para o desenvolvimento delas. Agora estava ali, inerte.
    Quando ela o viu, os olhos brilharam e pareciam saltar das órbitas. Ele pode perceber a felicidade daquele coração, enquanto o dele não sabia se chorava ou sorria. A enfermeira explicou como comunicar-se: uma piscada para sim, duas para não. Então ele ficou ali por horas, sentado ao lado da cama, segurando a mão de Clara, contado as histórias da sua vida e tentando saber dela aquilo que se passava por detrás dos olhinhos verdes. Já fazia quase ano naquele estado, praticamente solitário, de apenas olhar pela janela e tentar conversar com as enfermeiras. Os pais dela já eram falecidos, sua avó estava com dificuldades de se locomover e nem sempre conseguia reunir as suas forças cansadas pela idade para ali se aninhar, perto da neta. 
    Chegou o fim do horário de visitas, tinha de partir, além disso precisava retomar as aulas na universidade que agora lecionava. Ao mesmo tempo, precisava de mais tempo ali, perto dela. Seu peito rasgava-se num dilema enquanto despediu-se, prometeu voltar em breve, deu um beijo em sua testa macia e deu as costas atravessando a porta. Percorreu novamente os corredores em busca da saída que não queria encontrar. Ao alcançar a rua sentou-se nas escadas e chorou por mais de hora. Não conseguia achar justo tudo aquilo, não via sentido de Clara estar presa à cama e acorrentada de ações dentro de seu próprio corpo.
    Seguiu pela avenida, retornou ao hotel e tentou dormir. Tudo em vão. Sabia que se abandonasse seu único amor naquela condição jamais se perdoaria. Quando o relógio apontava dez horas da manhã ele estava ao seu lado, mais uma vez. Resolveu contar outras histórias, abriu o peito e expôs seus mais sinceros sentimentos para então lhe pedir o voto de confiança de seguir com ele para a capital. Queria tentar novos procedimentos para tratá-la, mesmo que se mostrassem inúteis para uma cura completa. Pelo menos gostaria de tentar contribuir para a doce moça realizar algum de seus sonhos, seguir com a vida, tentar comunicar-se melhor. Sabia dessa possibilidade, a tecnologia havia evoluído muito nas mãos capacitadas dos homens e tinha dinheiro para servir a esse nobre propósito.
    Clara aceitou a proposta, tinha ânsia de viver, de continuar a estudar, de enfrentar aquela situação. Entregou-se aos braços do homem que havia lhe abandonado no passado, mas a resgatava agora - e quando mais precisava. Prometeram visitas constantes a sua avó e mandar notícias todos os dias. Ele comprou uma cadeira de rodas toda equipada com aquilo que havia de melhor para permitir conforto e comunicação, através de um software e sensores. Ela conseguia agora expressar sentimentos, desejos, pensamentos - tudo de uma forma ampla e até abstrata. Voltou à universidade para realizar o mestrado, escreveu livros infantis e teve a vida social novamente para compartilhar toda aquela represada e quando ele olhava para ela conseguia ver o sorriso que sua amada esboçava internamente.
    Seguiram juntos, ambos com o coração repleto de paz. E todos os dias, antes de dormir e deitada na cama ao lado dele ela comunica, com seus belos olhos verde-água, através de três piscadas: eu te amo.


{Inspirado pelo episódio de Grey's Anatomy - S04E01 (21:36min)}

terça-feira, 24 de julho de 2012

As curvas

    É perigoso calcular nas entrelinhas da vida enquanto a ansiedade está nos comendo por todas as beiradas. Vamos forçando os ângulos de nossa visão, estreitando limites e acumulando vontades... sofrendo pelo mal da antecipação.
    O frio que sobe no estômago quer dizer alguma coisa, o olho que fecha e revira entre as palpebras quer emitir um sinal, as mãos que se esfregam sem cessar querem transmitir uma mensagem, os pés que atritam contra o chão precisam do entendimento: a pressa é nossa companheira.
   Temos ânsia de algo inominável, tateamos um universo desconhecido de possibilidades e esperamos sempre escolher o certo. Acontecemos entre os caminhos, esbarramos nas vontades alheias, nos esprememos entre as fendas que encontramos e fugimos do espaço limitado e sufocante de um cotidiano sem surpresas.
    É incoerente que sigamos na busca de uma via pavimentada e segura, mas por dentro desejemos uma estrada de curvas acentuadas. Talvez sejam as curvas que almejemos e os mistérios que residem por detrás delas. Precisamos da adrenalina do não-saber, da dúvida que revira o estômago, do frio na espinha de pensamentos que seguem para lados opostos.
    Parece parte inerente da condição humana esse desejo versus angústia pelo desconhecido. Ter certeza não soluciona, atrapalha, torna monótono, tira a graça de conquistar o próximo passo. Merecer a paisagem faz o quadro inteiro ter mais cores... e isso provêm de esforço.

Trapaças

A vida é feita de algumas pequenas trapaças, e a soma delas indica até que ponto estamos apenas protelando uma resposta {geralmente mais óbvia do que gostaríamos}.