terça-feira, 22 de maio de 2012

Ponto final

    Olhou as folhas, leu, assinou e por hábito marcou com um 'x' onde ela deveria assinar, lhe entregando a caneta. Viu as unhas pintadas de vermelho cereja e pensou em como havia mudado aquela que antes nem lhe dirigia diretamente o olhar, por vergonha. Agora até combina lábios e unhas em tom cereja - olha profundamente e emite opiniões sem perguntar se pode fazê-lo. O advogado praticamente pede permissão para intervir enquanto ela fala. Não conseguiu deixar de se imaginar entre aquelas folhas e pessoas, fazendo sexo com ela na mesa. Gostava da esposa submissa, admitia, mas essa cheia de personalidade lhe dava um tesão inexplicável. Logo ele, que agora tinha uma outra mulher com 10 anos menos e de seios turbinados - se sentindo atraído por aquela que ele abandonou.
       A caligrafia impecável, da moça estudiosa do interior, continuava a mesma. O traçado fluía pelo papel como se fosse soprado por um vento invisível. Nome e sobrenome, ponto: acabou de vez. Agora está solteira novamente e certamente vai casar com algum babaca. Vai aprender novas receitas e cozinhar para ele provar, fazer massagem quando o imbecil chegar estressado do trabalho, abraçar e cheirar o pescoço pra dizer o quão cheiroso o idiota está, telefonar no final da tarde para perguntar se vai chegar cedo em casa e o que deseja para o jantar. Ou então vai se tornar essa versão moderna, com cinta-liga e salto-agulha, que liga pra dizer alguma sacanagem enquanto diz estar sem calcinha esperando pra ser o jantar dele.
        Como se escutasse os pensamentos dele ela o olhou enquanto cruzava as pernas e o deixava ver a calcinha, tão cereja quanto o resto do conjunto. Sorriu. Era a vingança dela ver o marido boquiaberto. Fez ginástica, comprou novas roupas, começou a frequentar a terapia, saiu com amigas, redecorou a casa, foi viajar - e se deu conta do quanto tinha se anulado pra satisfazer aquele que a queria dentro de uma cúpula de vidro. A ironia foi ele mesmo ter rompido o casulo, a deixando por uma ninfeta calibrada e instável. Ficou sabendo através da filha das características mimadas da escolhida de seu ex-marido. E riu, por horas.
         Levantaram-se e apertaram as mãos. A situação foi muito formal, nem parecia o final de um casamento de 26 anos. Dois filhos, um cachorro cego, dois gatos siameses, um papagaio que se perdeu na viagem para a praia, uma televisão que os fez brigar umas cem vezes e teve o controle remoto guardado dentro do freezer pelos filhos, um jardim cheio de girassóis e duas macieiras, vinte jantares à luz de velas em comemoração ao aniversário de casamento, um Natal entre goteiras e baldes com risadas e canções, dez invernos cheios de cobertores empilhados (por causa dela) e com ele dormindo pelado, uma noite inteira em claro no nascimento da filha enquanto ele a enchia de beijos e recebia alguns resmungões, um choro convulsivo dele amparado pelo abraço dela e dos filhos no velório do pai, [...].
          Um acúmulo de momentos compartilhados congelado para sempre. A novidade renovando o ar, egos inflados pelo orgulho - e uma lágrima represada em cada um. Era a vingança da memória.

2 comentários:

Sabrina Andrade disse...

Clap! Clap! Clap!
Eu amo esse tipo de texto. Esse tipo que nos deixa querendo mais!
Essa vingança da memória é perigosa, mas nem tanto quanto a vingança da saudade...
Gostei muito daqui.
Beijos
Sah

saahandradee.blogspot.com.br

Carole Kümmecke disse...

Que bom que gostastes, Sabrina. É uma honra ter pessoas 'me' lendo. Volte sempre que desejar. ;)
Beijos!