sábado, 20 de novembro de 2010

Labor

Não havia pausa. Ininterruptos objetos passavam pela lateral do meu corpo e eu tinha de dar conta de cada um deles. Disso dependia o alimento que meus filhos poriam na boca no jantar. Todo o meu corpo doía e eu estava me anestesiando disso visualizando eu e meus pequenos brincando no parque ou quando os coloco para dormir e me olham com tanto amor que quase fico sem respirar. O barulho era praticamente ensurdecedor - nunca haviam se preocupado se nossos ouvidos resistiriam àquele som constante de ranger de máquinas que trabalhavam roboticamente entre nossos corpos. Eu perdia sempre a conta de quantos itens eu segurava, girava para conferir e colocava na outra esteira que ficava atrás de mim. Aquele movimento me perseguia até em meus mais profundos sonhos: um dia cheguei a sonhar que havia uma peça metálica entre meu tronco e minhas pernas que me permitia girar uma volta completa tantas quantas fossem as vezes que quisesse. Quem sabe se fosse assim não sentiria tanta dor. Já não conseguia pegar nem o mais novo no colo quando estava cansado. Estes pensamentos eram proibidos durante a jornada pois me faziam questionar o trabalho e sentir mais cansaço. No fundo eu sabia que era um abuso todo o trabalho que realizava combinado com o valor insatisfatório que recebia. Prometiam melhora de jornadas, escalas, aumento de salário e ajuda de custo com alimentação - mas sempre me olhavam torto por saberem dos meus filhos e do custo que cada um teria se fossem contabilizadas as minhas reais necessidades. 
Chamaram-me à sala do supervisor logo depois de chegar ao pavilhão e disseram que eu já havia prestado muito àquela instituição e merecia algo melhor. Eles haviam comprado uma nova máquina e precisavam de alguém que operasse, era fácil e rápido de aprender a manuseá-la. Bastava pressionar dois botões: um para quando o produto estivesse nas condições ideais e outro quando não estivesse. Verde e vermelho. Tão fácil que mal acreditava e o que era melhor: meu salário dobraria.
Cheguei em casa e fui contar ao meu marido. Entrei na cozinha e ele estava conversando com mais dois vizinhos nossos e suas mulheres - todos trabalhavam na fábrica. Antes que eu pudesse abrir a boca e proferir algum som eles me contaram que uma máquina recém adquirida pelos donos seria a responsável por mais de cinqüenta demissões. Completaram dizendo que ainda não sabiam quem iria operá-la. Estavam aflitos: apesar da dor da repetição incessante entre as esteiras aquilo que garantia sua sobrevivência e de seus filhos. O meu semblante murchou por saber-me responsável pela dor de tantas pessoas e da injustiça que seria cometida. Entretanto, se não fosse eu seria outro. 
Aquele foi o primeiro dia que não consegui dormir quando deitei o corpo castigado pelos sucessivos movimentos. Os olhos vidrados no teto enquanto na cabeça os pensamentos fixavam-se ao problema da máquina. Quando era hora de acordar apenas levantei e segui fazendo o ritual do café da manhã, tomei meu banho e me vesti. Saí de casa já com tudo minuciosamente planejado. Cheguei mais cedo e fui até a gigantesca sala onde tapado por uma lona encontrava-se o motivo de minha insônia. Peguei um alicate de corte, um martelo e uma chave de fenda e segui por baixo da lona até encontrar o coração daquele dragão. Tinha pouco tempo, mas realizei um bom estrago e saí antes que me percebessem. Fui caminhando para casa  pensando na escolha feita e que não levaria muito tempo até que arrumassem ou substituíssem aquela geringonça. Prostrei-me à cama e chorei por horas a minha temporária liberdade.

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