segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Sanidade

Pra continuar sã:
eu penso
e sinto
e fluo.


Até o osso
até o átomo
até a fagulha da alma.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Cartilha

Ninguém disse que tinha cartilha pra nascer.
Para ser parte deste mundo tenho de seguir várias normas.
Quem disse que quero esta regra geral?
Quem disse que quero ser assim?
Que finge não sentir dor, raiva e medo...
Que finge não querer sempre um sorriso a mais...
Que finge não se importar pelo abandono...
Que finge tanto que esquece quem realmente é.
Alguma vez disse querer ser fajuta de mim mesma?
Sou mais este sonho trôpego que tenta se encontrar em descaminhos.
Sou mais estas palavras que sempre tentam tecer o real.
Sou mais estas cicatrizes de quem se arriscou.
Sou mais esta eterna possibilidade de ser mais algum grão - de emoção.

sábado, 20 de novembro de 2010

Labor

Não havia pausa. Ininterruptos objetos passavam pela lateral do meu corpo e eu tinha de dar conta de cada um deles. Disso dependia o alimento que meus filhos poriam na boca no jantar. Todo o meu corpo doía e eu estava me anestesiando disso visualizando eu e meus pequenos brincando no parque ou quando os coloco para dormir e me olham com tanto amor que quase fico sem respirar. O barulho era praticamente ensurdecedor - nunca haviam se preocupado se nossos ouvidos resistiriam àquele som constante de ranger de máquinas que trabalhavam roboticamente entre nossos corpos. Eu perdia sempre a conta de quantos itens eu segurava, girava para conferir e colocava na outra esteira que ficava atrás de mim. Aquele movimento me perseguia até em meus mais profundos sonhos: um dia cheguei a sonhar que havia uma peça metálica entre meu tronco e minhas pernas que me permitia girar uma volta completa tantas quantas fossem as vezes que quisesse. Quem sabe se fosse assim não sentiria tanta dor. Já não conseguia pegar nem o mais novo no colo quando estava cansado. Estes pensamentos eram proibidos durante a jornada pois me faziam questionar o trabalho e sentir mais cansaço. No fundo eu sabia que era um abuso todo o trabalho que realizava combinado com o valor insatisfatório que recebia. Prometiam melhora de jornadas, escalas, aumento de salário e ajuda de custo com alimentação - mas sempre me olhavam torto por saberem dos meus filhos e do custo que cada um teria se fossem contabilizadas as minhas reais necessidades. 
Chamaram-me à sala do supervisor logo depois de chegar ao pavilhão e disseram que eu já havia prestado muito àquela instituição e merecia algo melhor. Eles haviam comprado uma nova máquina e precisavam de alguém que operasse, era fácil e rápido de aprender a manuseá-la. Bastava pressionar dois botões: um para quando o produto estivesse nas condições ideais e outro quando não estivesse. Verde e vermelho. Tão fácil que mal acreditava e o que era melhor: meu salário dobraria.
Cheguei em casa e fui contar ao meu marido. Entrei na cozinha e ele estava conversando com mais dois vizinhos nossos e suas mulheres - todos trabalhavam na fábrica. Antes que eu pudesse abrir a boca e proferir algum som eles me contaram que uma máquina recém adquirida pelos donos seria a responsável por mais de cinqüenta demissões. Completaram dizendo que ainda não sabiam quem iria operá-la. Estavam aflitos: apesar da dor da repetição incessante entre as esteiras aquilo que garantia sua sobrevivência e de seus filhos. O meu semblante murchou por saber-me responsável pela dor de tantas pessoas e da injustiça que seria cometida. Entretanto, se não fosse eu seria outro. 
Aquele foi o primeiro dia que não consegui dormir quando deitei o corpo castigado pelos sucessivos movimentos. Os olhos vidrados no teto enquanto na cabeça os pensamentos fixavam-se ao problema da máquina. Quando era hora de acordar apenas levantei e segui fazendo o ritual do café da manhã, tomei meu banho e me vesti. Saí de casa já com tudo minuciosamente planejado. Cheguei mais cedo e fui até a gigantesca sala onde tapado por uma lona encontrava-se o motivo de minha insônia. Peguei um alicate de corte, um martelo e uma chave de fenda e segui por baixo da lona até encontrar o coração daquele dragão. Tinha pouco tempo, mas realizei um bom estrago e saí antes que me percebessem. Fui caminhando para casa  pensando na escolha feita e que não levaria muito tempo até que arrumassem ou substituíssem aquela geringonça. Prostrei-me à cama e chorei por horas a minha temporária liberdade.